quinta-feira, 26 de março de 2020

fruta com amor no nome

Antonio e eu passamos 3 dias colhendo amoras, sonhando uma geleia. Intensas caminhadas, buscando amoreiras: será que o passarinho comeu? Será que já amadureceu? Deixa eu subir no pé pra colher as que estão mais altas! E sempre se apresentava uma linda surpresa de encher mãos e potinhos improvisados, até termos a quantidade suficiente para fazermos a geleia. Me lembrei da minha infância na Itália: "Robi, andiamo a fare i frutti di bosco?". Aí a gente pegava a cestinha e se embenhava pelo mato. "Frutas do bosque", rasteiras ou arbustivas, entre elas amora, framboesa, moranguinhos silvestres, mirtilos... E depois da colheita, minha tia Emilia preparava uma marmelada para rechear a "crostata". Lembranças tão doces...

Na última sexta-feira, ela partiu, vítima do vírus. Foi uma dor tão grande que o tempo parou. Essa mulher foi minha segunda mãe, minha avó, minha tia em tempos tão distintos da minha vida... Me ensinou a plantar, a amar a natureza, a acampar, a parir nenéns, a viajar, a cozinhar tantas delicias... então entendi que esse lance todo das amoras foi nosso ritual de despedida. Minha geleia virou na verdade uma marmelada, com a consistência exata para rechear uma crostata - como as que ela fazia.

Siga na luz, zia Emilia.



quarta-feira, 18 de março de 2020

quando tudo passar

Meu sonho é que a gente acorde deste pesadelo despertos. Que um número muito grande de pessoas  dê uma grande guinada e seja incapaz de permanecer levando uma vida vazia.

Que percebam o quão possível e natural é ficar na pausa com os seus fazendo "nada", gastando "nada", comprando "nada", mas sentindo tudo. Compartilhando e refletindo sobre o valor real das coisas, sobre a essência de estarmos aqui, sobre o divino que é SER HUMANO. 

Sonho que as pessoas vivam plenamente esse ócio criativo, tocar, cozinhar, tricotar, ler, debulhar feijão, passar um café, fazer pão, prosear, contar histórias de família... e que depois de tudo se perguntem: "o que pode ser melhor que isso? por que preciso abrir mão de tudo isso para viver?"

Sonho que a gente consiga olhar para tudo que temos, olhar e agradecer, mas perceber que não precisamos de um décimo de tudo aquilo. Que, ao acordarmos, possamos reavaliar nossas necessidades materiais reais, acumular menos, doar mais.

Se doar mais. 

Sonho que despertemos deste torpor e que coloquemos nossos corações em marcha. 

[Hilma Af Klint]



quinta-feira, 12 de março de 2020

auto-alta

Hoje me dei alta da terapia. Eu mesma.
Nunca tinha feito isso e me senti muito corajosa.

To num desassossego. A gata inquieta anda, mia, come, se estica, pula pela janela, se roça na minha canela. Espelha meu estado de espirito. Não consigo dormir. Comecei a ler sobre o tal do vírus. Humanidade doente (literalmente, agora). Penso como conseguimos chegar nisso: odiar a vida a ponto de querer aniquilar a sua própria. Bicho homem. Tão apartado de tudo, como desaprendeu tão rápido?

Aquela chuva toda de semanas atrás lavou muita coisa aqui dentro.
Árvores caíram.
Desprenderam suas raízes para dar espaço a novas sementes.

Aquele curso - na sequencia da chuva toda - encontrou uma placenta.
Absolutamente fértil.
Attraversiamo?