domingo, 27 de maio de 2012

a terceira margem do rio

Quando dei um passo rumo ao outro lado do rio, Red Hot começou a tocar "Parallel Universe" no meu ipod. Essa sincronicidade me fez sorrir secretamente, como se aquele universo paralelo fosse na verdade meu universo particular, como se somente eu no mundo, naquele momento, pudesse compreender o significado daquela coincidencia. "Parallel Universe" era a musica perfeita para cruzar aquela ponte.
A ponte representava o surrealismo indiano que nem Dali, com toda sua criatividade e loucura, pode imaginar. A ponte, diria Lenine, "nao é para ir nem pra voltar, a ponte é somente atravessar, caminhar sobre as aguas desse momento". Me bateu uma nostalgia antecipada ao perceber que aquela seria a ultima vez (desta vez) que cruzaria a ponte. Aproveitei ao maximo todas as sensaçoes, dei passos em camera lenta, troquei longos olhares com estranhos, observei tudo com a inocencia de uma criança, como se fosse a primeira vez. Fui caminhando por entre o barulho, as buzinas, as vacas, os mendigos, os macacos, os turistas, acompanhada pelos urros de Antony Kiedis, que fazia toda aquele fantastico parecer normal, todo aquele universo paralelo estar ao alcance das minhas maos.
Chegando à outra margem, nao olhei pra tras. Olhar pra tras nao serve pra nada, senao pra aprender, pensei. Mas neste momento me faria sentir mais nostalgica. Me restavam apenas algumas horas antes de tomar o taxi para Delhi. Apesar de menos de 300 Km separarem Rishikesh da capital, a viagem poderia durar ate 8 horas, dependendo do transito. Assim, em decisao pensada e cuidadosamente avaliada, contratei um taxi particular para me levar diretamente ao aeroporto, sem a desagradavel passagem pela insana Delhi. Me certifiquei de que o taxista era de confiança e sobretudo de que nao dormiria ao volante, ja que pegariamos a estrada à noite.
Malas prontas, por volta das 23h30, como combinado, o taxi me buscou no ashram. Nao pude deixar de derramar algumas lagrimas nao de tristeza, mas sobretudo de gratidao pelo intenso mes de aprendizados. Tentando me distrair do meu estado emotivo, o motorista se apresentou calorosamente, com seu jeito bonachao, como uma inacreditavel piada pronta:
- Boa noite, madam. Qual seu nome?
- Beta.
- Beta? Prazer, Beta! Meu nome é Sono.
Sono?!?!?!
Achei melhor nao explicar pra ele o que "sono" significava em portugues.
- Prazer, disse. E seja o que Deus quiser.
Entre as muitas coisas que aprendo com a minha mae, a primeira é: confie. E a segunda: ouça atentamente sua intuiçao, ela nunca se engana. Eu estava confiante. No fundo, la no fundo mesmo, eu tinha certeza de que minha integridade fisica nao seria comprometida. No começo da viagem, dei uma relaxada, mas minha intuiçao nao me deixava dormir...
Logo, Sono parou o carro. "Estou cansado". Estavamos na metade do caminho, e poderiamos parar por uma hora para descansar e chegar em Delhi a tempo de pegar meu aviao, afirmou. Concordei, mas dez minutos depois, Sono nao conseguia pegar no sono e resolveu seguir viagem. Trocadilho infame a parte, a viajante aqui começava a ficar tensa. Ainda teriamos mais de tres horas ate Delhi e nao estava muito animada com a perspectiva de um motorista cansado.
Tentei puxar assunto e, de repente, Sono simplismente dormiu ao volante. Dei-lhe um chacoalhao e perguntei se ele queria que eu dirigisse. A resposta veio imeditamente: ele encostou o carro no "acostamento" e pediu para que eu pulasse para o banco do motorista. Enquanto eu dirigia numa estrada indiana, na mao direita, no meio da noite, Sono dormia o sono dos justos praticamente deitado no meu colo - e ganhava 60 dolares por isso! Parallel Universe.
Eu nao sabia se rir ou chorar, mas como em quase todas as situaçoes desta viagem, escolhi o riso. Dirigi por quase duas horas, apreensiva e atenta, zelando pela minha vida que tanto amo, por entre caminhoes na contramao e motoristas sonambulos, buzinando a cada 30 segundos, porque assim se dirige na India. Eu que tanto odeio buzinar, veja voce que ironia... Sono, vez em nunca, abria os olhos e escancarava um sorriso: "indian driver!!! Good!!!". Nas proximidades de Delhi, o transito se intensificou e pedi a Sono que pegasse o volante. Estava cansada e muito brava com a cara de pau dele, mas so queria chegar ao aeroporto o mais rapido possivel.
Quando entrei no aviao, tudo aquilo parecia um sonho. Percebi que o universo paralelo estava muito alem da ponte: o fantastico estava presente em cada momento, em cada cena alucinante dessa incredible India.
Feliz em poder voltar pra casa, adormeci suavemente.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

chama-se viagem

Voce pisca os olhos e ja passou. Voce faz tantas coisas, vive experiencias inimaginaveis, conhece pessoas que mudam sua vida, e tudo nao passa de um lapso da sua breve existencia. Chama-se viagem. Eu lembro que, antes de partir, nos encontramos para um cafe numa padaria de uma esquina familiar. Como sempre, voce tirou com a minha cara: "Claro...esta viagem vai mudar a sua vida, voce vai voltar oooutra pessoa", disse com um sorrisinho ironico. Faltou entendimento de que eu mudo todo dia, sou mutante, buscadora, a impermanencia é o que me alimenta. Sou curiosa, atenta e observo cada detalhe, fotografo cores, recorto palavras. Eu sou assim. To ligada na V-I-D-A. Viajar me transforma, pode acreditar.
Lembro tambem que, no dia antes de partir, sempre quero desistir. Me da uma dor de barriga dos infernos, e a sensacao de que nao vai ter ninguem me esperando no aeroporto me enfraquece. Mas depois que eu entro no aviao, viro uma leoa. E na vespera da volta, nunca quero voltar. Sempre acho que poderia ficar uns dias a mais, ou simplesmente ficar.
Na outra noite, minha mae me perguntou por telefone:
"E ai, ja ta de saco cheio da India ou quer ficar mais??".
"De saco cheio da India eu to desde a primeira semana... mas... quero ficar!", respondi.
Vai entender... a India é assim.

Algumas observaçoes inusitadas/uteis/talvez interessantes, porque eu gosto de fazer listas (sempre):
  • Pra que outro sapato?! Tudo o que voce precisa chama-se "HAVAIANAS"! Leve, lavavel, nao da chule, confortavel, é brasileira, barata e ta no pé do mundo inteiro.
  • REALMENTE nao use roupas justas, bermudas, camisetas sem mangas, shorts e saias curtas nem pensar. Isso muda a qualidade da sua relaçao com as pessoas, especialmente se voce for mulher.
  • As vaquinhas soltas nas ruas sao uma gracinha e sagradas pros hindus, mas nao pra voce. Nao se meta a besta com elas, principalmente se forem touros, eles tem chifres.
  • Em 5 minutos, o preço de qualquer item - desde uma corrida de rickshaw ate uma encharpe de seda - pode cair de 2000 pra 10. Sorte de quem sabe barganhar. Nao é o meu caso...
  • Nao pergunte muitos porques. As coisas sao como sao, nosso conceito de "razao" nao se aplica por aqui.
  • A Lei Universal da Fisica de que dois corpos nao ocupam o mesmo lugar no mesmo tempo tambem nao se aplica. Na India, muitos corpos podem ocupar um lugar onde mal caberia um, no mesmo tempo - e por muito tempo!
  • Quando voce acha que todas as bizarrices ja aconteceram, pode se preparar que vem mais por ai.

India. Nunca mais ou até ja. Para sempre.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

cuca fresca

Este post eh sobre muitas coisas - essa eh a desculpa que eu dou quando minha cabeca nao consegue organizar tudo que eu tenho pra dizer.
Estou revendo muitos dos meus conceitos aqui na India. Eh uma viagem transformadora porque todas sao, mas sobretudo porque resolvi mergulhar em mim - coisa que poderia ter perfeitamente feito no Brasil, mas nao sei porque resolvi fazer aqui. Enfim, como ja escrevi em algum momento, esta eh uma viagem pra dentro.
Comecei a fazer um tratamento ayurvedico (medicina tradicional indiana) de alguns dias. Procurei alguns medicos, fui conhecer clinicas e optei pela Dra. Usha - eu desconfio que as mulheres consigam entender mais sobre as questoes femininas, sera?
Conversamos por mais de uma hora, ela me fez muitas perguntas sobre meus habitos, meu estado de saude e como encaro as situacoes da vida. Depois de definido o tratamento, decidi comecar no dia seguinte - nao foi uma decisao facil: o tratamento seria via anal. Engracado, pensei, os indianos tem todo esse pudor com o corpo de nao poder se mostrar, se tocar... mas na hora de enfiar o dedo no cu do outro, tudo bem, ne?! E ao mesmo tempo, nos ocidentais temos toda a liberdade com o corpo, usamos fio dental na praia, mas em geral temos uma imensa dificuldade em lidar com o corpo-verdadeiro, com suas manifestacoes absolutamente naturais. Confessa ai que fazer coco na casa do cara onde voce dormiu pela primeira vez na vida eh a coisa mais facil do mundo?! Ou que voce nao vai morrer de vergonha se, no meio daquela festinha com seus amigos mais cools, sair correndo pra vomitar? Ishh, nao deu tempo de chegar no banheiro??? Ai voce quer abrir um buraco no chao e se enterrar ate ninguem mais lembar que voce existiu! E aquele pum que nao da mais pra segurar?! Voce se alivia fisicamente, mas o peso na consciencia nunca foi tao grande, fala a verdade? Ainda por cima, olha pro resto da galera que ta na mesma sala com aquela cara de "poxa, que sem nocao soltar esse peido aqui, hein?!".
Pois eh, aqui isso nao existe. Arrotos, escarros, vomitos e quetais sao manifestacoes NATURAIS do nosso corpo - justamente - e portanto consideradas com tal naturalidade. Quem foi o imbecil que inventou que a gente nao pode arrotar em publico?? Meu pai sofre de esofagite ha decadas e sempre foi um problema em casa quando ele passava mal durante as refeicoes. O coitado tinha que ficar aguentando caras feias e, constrangido, se levantava da mesa para que o corpo pudesse se manifestar em paz. Mesma coisa com os escarros: sempre achei deploravel a mania dele cuspir na rua, mas se eu nao tivesse engolido tanto catarro na minha vida, certamente estaria respirando melhor agora. Minha existencia estaria mais leve.
De maneira alguma acredito que seja justificavel a falta de higiene dos indianos e alguns habitos, que, apesar de saudaveis, sao muito radicais para minha mente obtusa ocidental. Mas acredito sim que temos muito o que aprender com eles. Nao, nao se preocupem: nao vou voltar pra casa sem simancol - certas coisas estao tao enraizadas em nossa cultura, que nem paramos para pensar se poderia ser diferente - so quando nos deparamos com situacoes opostas a tudo que praticamos ate hoje.
Trocando em miudos, meu tratamento foi tao simples quanto tomar um comprimido. A naturalidade com que a terapeuta me tratou foi tamanha que, no segundo dia, eu ja estava achando normalissimo. E depois de tudo, ganhei deliciosas massagens a quatro maos, saunas, e um oleo na cabeca "efeito-bala Halls". Minha cuca ficou fesquinha, fresquinha...

Em tempo: dentre todas as vontades do nosso corpo alheias a nossa racionalidade, a que considerei mais absurda de tentarmos conter (se eh que tem alguma menos ou mais absurda...) sao nossas lagrimas. Por que sera que elas sao motivo de tanto constrangimento e sempre associadas a tristeza?? Deixa vir, deixa chorar. Na melhor das hipoteses, seus olhos vao ficar limpinhose lubrificados, prontos para enxergar melhor as belezas do mundo.