sábado, 20 de julho de 2019

alucinação

Embarcamos na estação Vila Madalena num domingo frio, perto das 23h. Antonio cansado de um dia de muitas brincadeiras, logo se aconchegou para uma soneca no banco duro do metrô vazio. Meu celular estava sem bateria, então já havia combinado com meu pai pelo telefone da Nicole para ele nos apanhar na estação Paraíso dentro de 10-15 minutos.

Sempre me dá alegria a boniteza dos rostos de vidro na estação Sumaré. Então sorrio. E ele entra no vagão. Fones no ouvido, volume mais alto do que o necessário - nessas horas, sempre me lembro do Daniel dizendo que estamos forjando uma geração de surdos. Bonito não seria bem o adjetivo para defini-lo, mas aquele ar de hipster abandonado me fez olhar para ele duas vezes sorrindo. Então ele ocupa o assento preferencial ao nosso lado. Seus poros exalam cerveja de uma tarde de domingo com os amigos. Faço carinho no Antonio. Tenho a impressão de ser uma mãe imaculada para a qual não se pode olhar, sorrir, tocar - pensei em sair por aí com um cartaz: "sou main mas não to morta!". Meu sorriso não foi retribuído nem por gentileza e foda-se também - mal sabia ele que eu sorria por dentro e não era pra ele.

De repente, um solavanco. Metrô para de supetão pouco antes de chegar ao Trianon Masp. Não é uma freada normal, é uma parada brusca. Motores e ar condicionado desligam imediatamente. Alguns segundos em silêncio no meio da galeria escura. Então ele retira os fones e pela primeira vez me olha buscando alguma conexão, algum reconhecimento, certa reciprocidade.
- Estamos parados por motivo de usuário na via, anuncia o condutor.
E ali ficamos por 10 minutos, que viraram 15, 20. Havia pouca gente no vagão, mas já se comunicavam com familiares e amigos "tamo aqui por causa de um filho da puta que resolveu se matar", dizia um. "Vai atrapalhar a vida das pessoas num domingo à noite, ah, faça-me o favor!", dizia a outra. Ele só mandava mensagens de texto e começava a suspirar ansioso. Da estação se ouviam comandos no microfone de códigos incompreensíveis: "todas as estações, DX56" Também comecei a ficar aflita porque queria avisar meu pai sobre nosso atraso.
- Será que eu posso usar seu telefone? Estou sem bateria e preciso avisar a pessoa que está me esperando na estação.
Ele me passou o celular com o rosto aflito.
"Pai, sou eu. Estamos parados no Trianon por causa de usuário na via. Sem previsão. Espera a gente".
"Estou sabendo. Estou na estação Paraíso. Teve um óbito aqui" - foi a resposta.
Olhei para aquela mensagem incrédula e passei o celular para ele com os olhos mareados. Ele leu e segurou a cabeça entre as mãos.
- Vivemos tempos difíceis...
Foi a única coisa que consegui dizer. Aliviada porque Antonio dormia e não precisei explicar para ele o que estava acontecendo, por que alguém faria isso? Calou fundo em mim a imagem de uma garota se atirando nos trilhos num domingo gélido. Como iria dormir aquele condutor de trem naquela noite? Um inocente escolhido a dedo para matar alguém. Como entender o tamanho do drama de alguém que resolve tirar a própria vida? Como manter a coragem em uma sociedade tão adoecida e desequilibrada?

Fui invadida por milhares de perguntas sem respostas. Senti calor, depois frio, depois falta de ar. Ele também ficou desbaratinado. Me olhou em busca de acolhimento. Aquele vagão vazio parecia imenso e aqueles minutos, eternos. Não precisamos falar nada. Aquela tragédia nos unia irremediavelmente de uma forma única. Apenas nós dois ali sabíamos o que havia de fato acontecido. 30 minutos dentro de um vagão parado, instantes de luto para elaborar minimamente o ato corriqueiro de sair dali e chegar em casa e tomar um banho e comer alguma coisa e colocar a cabeça no travesseiro e acordar de novo e tomar mais um metro e seguir a vida como se nada tivesse acontecido. Porque no fundo é isso que estão querendo fazer parecer: que nada acontece. Tudo é banal e estamos perdendo a capacidade de nos afetar para garantir nossa própria sobrevivência.

O metro começou a andar vagarosamente. Chegamos na estação Trianon, alguns passageiros entraram e uma moça disse que alguém havia se machucado bastante. Ao chegar no Paraíso, um suspiro de alivio. Num ato de gentileza, ele pegou minha mochila e disse: - Também vou desembarcar aqui. Acordei Antonio e saímos do vagão. De pé, os três na plataforma sem saber muito como se comportar. Pensei em apenas pegar a mochila e agradecer, mas ele então se aproximou, me deu um abraço demorado que só dois cúmplices podem dar.
Nos perdemos no meio da multidão com a promessa de não olhar pra trás.

A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia

E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais

[Belchior]